terça-feira, 28 de setembro de 2004

A idade de Cristo

A idade de Cristo

Relato de uma internação


Ar. Só o valorizamos quando nos falta. Meu peito dói. A respiração é curta. Tenho febre. Náuseas. Encolhido numa cadeira de rodas, tento respirar. As costelas esmagadas por uma pressão abissal. Os pensamentos em espasmos. Tento me concentrar, saber como vim parar aqui. Olho em volta. Um corredor de hospital. Odeio hospitais. Frase feita, odiar hospitais. Ofende-se a quem trabalha neles. É como me dissessem odiar universidades. E há quem o diga.

Começo a lembrar. Árvores passavam pela janela. Andréa dirigia, um olho em mim outro no volante. Perguntava como eu me sentia. Tentava me manter acordado. Me deixou numa entrada de emergência e foi estacionar. Entrei cambaleando pela porta da frente. Disse à recepcionista que não conseguia respirar. Fui encaminhado para uma maca. Deitei. Esperei uma eternidade. Um médico veio e me fez perguntas. Respondi o que pude. Colocaram-me nesta cadeira de rodas. Tenho frio e dores por todo o corpo. Sensação de desmaio. Parece um ataque de pânico. Preciso sobreviver. Para contar.


Continua

sexta-feira, 17 de setembro de 2004

Frases para se desconfiar

Divinópolis - Essas são (in)falíveis:

1 - Vamos deixar as coisas como estão.

2 - É bom, mas tem um problema.

3 - Entraremos em contato.

4 - É só uma pequena intervenção.

quinta-feira, 16 de setembro de 2004

Do conservadorismo

Divinópolis -

A vida é constante movimento. As tentativas de interromper esse fluxo, por mais assimétrico, desconcertante e vertiginoso que seja, devem ser consideradas crime contra a humanidade. Mudar está previsto no código genético de todos os seres. A própria palavra ser indica inconstância. Em inglês, francês e italiano os verbos ser e estar têm o mesmo significado. Em português têm interpretações diferentes, mas isso, longe de ser ruim, só amplia o signifcado. Todo estar é momentâneo. Nós estamos mais do que somos.

Mudar a disposição dos móveis, mudar de lugar, de cabelo, de cidade, de leitura, mudar de canal, mudar de moda sem entrar na moda da mudança não é mero exercício de vaidade, mas uma proposta de retorno à natureza. Porque assim como a natureza, somos seres em permanente transformação.

Tudo se transforma, mas é da natureza do ser humano achar que pode viver de forma independente da... natureza. E julgar-se extra-natureza é como declarar-se extra-terrestre. A tentativa de se conservar explorando os recursos naturais (recursos em mutação) traz conseqüências já conhecidas. A natureza, como os homens-bomba, vinga-se indiscriminadamente.

Nossa necessidade de mudança não precisa ser necessariamente uma renúncia ao que gostamos. Ficam os bons livros, os bons discos, os bons amigos, as boas maneiras. Manter um estado de coisas somente "porque é mais fácil" atesta nossa falência enquanto seres. Todo conservadorismo é uma opção pela barbárie. Resistir às mudanças é barbárie. Religiões dão a medida da barbárie. Códigos penais reproduzem a barbárie. A política partidária é a barbárie.

Entendo a necessidade da quietude e da meditação, esse esporte para evitar o pensamento, quando a velocidade das mudanças parece ter perdido o controle. Mas essa postura não deve ser estendida a todos os momentos da vida. O conservadorismo é absurdo porque tenta dar ordem ao que foi feito para ser apenas caos. A vida é o Samba do Lavoisier doido: Na natureza (na natureza!) Nada se cria (nada se cria!) Nada se perde (nada se perde!) Tudo se transforma (transforma!! transforma!!).

A vida é um rio.

segunda-feira, 13 de setembro de 2004

Totem

Totem

- Gosto de jaquinzinhos e de petinga, gosto de lombos de salmão, ou de bifes de atum ou de espadarte. Se ainda não perceberam, gosto de comer aquilo de que nada fica, pois nada me desgosta, e enoja mais, do que ver os restos daquilo que estou a comer. Sou daqueles, devo esclarecer, que come o jaquinzinho da cabeça ao rabo, sem deixar qualquer vestígio, e nada me desgosta mais do que ter que não só deixar, mas conviver, com os restos daquilo que acabei de comer.

Luís Ene dá início a psicoterapia de grupo sobre idiossincrasias à mesa. Os participantes aplaudem-no. O cheiro de comida vem dos fundos, misto de vinho, pães e azeitonas. Ele deixa o púlpito, para onde sobe um homem de aproximadamente, cerca de, por volta de mais ou menos 33 anos. Ele olha ao redor, aparentemente nervoso, e começa:

- Oi, meu nome é Avery.

- (Todos respondem) Olá, Avery .

- Também não gosto de ficar perto dos restos de comida (agarra a lateral do púlpito, os dedos da mão esquerda em Dó maior), prefiro que desapareçam. Também não gosto de usar as mãos para comer, prefiro talheres ou hachi. Pão, tudo bem. Justifica tocar no alimento. Então...

- Não se preocupe, eu sempre cortava o pão depois de lavá-lo, diz uma voz se antecipando.

- Obrigado. Você ajudou bastante. Quem é o próximo?

- Espere, conte mais, diz uma adolescente muito magra que olha para o adolescente com espinhas sentado ao fundo.

- Bom, é isso, não sei mais o que dizer. (seca as mãos com sopros discretos) Talvez só que me meti numa confusão. Não dá pra sustentar uma história assim por muito tempo, entende? A idéia era manter o poema em movimento, construí-lo aos poucos partindo de um fragmento qualquer do grande livro humano; costurá-la com cultura pop e eventos bizarros perenemente, até que um dia ela acabe por si mesma. Meio Charlie Kaufman, que é paradigmático como Dali, entende? Só que mais obra em construção que obra aberta, como um Mahabharatha por Dante. Como um Decamerão pelos irmãos Campos, entende?. E no fundo tudo é a mesma coisa: romances, jornadas, buscas, sonetos, tudo está escrito, mas gostaria mesmo era que a construção pudesse ser acompanhada. A construção diz, ao mesmo tempo em que se auto-censura por dar-se o cacoete entende?, quando na verdade não fala entende? ou coisa do gênero. Mas não se faz entender.

- Pois bem, pois bem, então eu falo, diz o homem de nariz grande percebendo a indecisão do depoente. Façamos como nos velhos tempos, em que as turmas de colégio se encontram 20 anos depois e todos contam como foi sua vida nesse período, e aparecem aqueles que ganharam dinheiro com produtos de uso doméstico, o ídolo dos esportes, a perua incorrigível e os intelectuais beberrões. A câmera vai deslizando pelo salão e mostrando os rostos...

- Isso não fica muito Peggy Sue?, diz uma mulher de cabelo curto e óculos de aro negro, típica mulher de cabelo curto e óculos de aro negro e olhar penetrante. Não basta ficar aqui falando de nossas manias à mesa?, ainda temos que ouvir esses dircursos estilo obra aberta, em que um autorzinho egoísta conta como pode escrever sobre si mesmo planejando misturar sem coerência personagens e pessoas, ficção e realidade? E tem que ser como ELE imagina? Façam-me o favor, não me digam que somos obrigados a ficar ouvindo esses discursos estilo obra aberta...

- Ei, você já falou isso, interrompe a menina magra. Somos personagens nas mãos dele e isso quer dizer que ele tem poder sobre nossas vidas, sobre nossas falas aqui, sobre nossa existência, tá legal? É bom não irritá-lo!! E se ficou muito Peggy Sue, dane-se, tá?, começa a chorar.

- Calma, calma, diz Tigrão234, codinome usado na rede pelo empresário gordo obcecado por jovens muito magras que ouvia o atentamente o discurso de Luís Ene, mas perdeu o fio da meada na primeira menção aos jaquinzinhos, que lhe lembraram a infância marítima, a cozinha da casa sempre em uso, as brincadeiras com a vizinha anoréxica, o cheiro da comida da mãe, mas que só acordaria do transe para dizer calma, calma, não chore, menina magra, não vou te machucar, prometo que não vou mais te machucar. Aqui. Aqui está sua boneca, seu travesseiro, sua caixa de fósforos roídos, tome, não chore mais.

- Aí a câmera se aproxima e vai fechando com a imagem do grupo reunido, contrastando com uma velha foto preto e branco da época em que eles eram apenas um bando de jovens artistas engajados, que faziam teatro, que acreditavam no futuro, na solidariedade e no amor eterno, mas hoje convivem com a Aids e o terrorismo. Eles ficam em posição para que a câmera deslize em...

O homem não tem tempo de reiniciar suas idéias sobre a composição cinematográfica do reencontro de turma. Parece saudoso de épocas sem retorno. Sua discretamente na testa, porque pensa, porque pensa. Planeja falar sobre um novo plano-seqüência, mas não não consegue porque ouve que

- Isso não é muito Peter's Friends?, diz Tigrão234, surpreendendo pela cultura cinematográfica.

- É aquele filme com a Emma Thompson e o Kenneth Branagh?, pergunta a menina muito magra.

- O Kenneth Branagh dirigiu, corrige a mulher de cabelo curto e óculos de aro negro.

- E atuou também, ele é o marido da atriz americana que faz um sitcom horrível, explica Tigrão234, que havia lido sobre Peter's friends na véspera, no catálogo da locadora.

- É uma sitcom, corrige a mulher de cabelo curto, que está sem óculos.

- E tem o Stephen Fry, aquele que sumiu, diz Avery, querendo acalmar os ânimos dos personagens (as personagens?, pensa em gêneros e não consegue decidir se a palavra é um galicismo e caso o seja, se se deve aceitá-lo em nome do colonialismo lingüístico, se é que isso existe em english times) e procurando algum lugar para lavar as mãos, acreditando que alguém lembrará da música sobre o Stephen Fry. Ninguém lembra a não ser o adolescente de espinhas, que não fala nada.

- E tem o Hughie Laurie, parceirão do Stephen Fry naquele Fry and Laurie, diz o homem de nariz grande.

- ... e foi escrito pela Rita Rudner e pelo Martin Bergman, completa a mulher de cabelo curto e óculos de aro negro.

Luís Ene dá de ombros e abre o notebook para escrever qualquer coisa, enquanto o homem de nariz grande concorda com a mulher de cabelos curtos e óculos de aro negro e Avery finge que desconhece outros Bergmans que não Ingrid e Ingmar, mas confessa ter visto A bit of Fry & Laurie, The Awfull Truth e Curb your enthusiasm mais do que gostaria, e embora não corra o risco de ser interpretado como feliniano, mas malkovichiano em típica avaliação torta de quem percebe o roteiro mais que o roteirista, desiste.

O público cala. A mulher de cabelo curto e óculos de aro negro fala por último. Diz que prefere não jantar.

Guerra fria